Educação e Cultura – Carlos Abicalil e Octavio Camargo – Provocações

O professor Carlos Abicalil, deputado federal por dois mandatos (2003-2011) e presidente da Comissão de Educação e Cultura da Câmara Federal no ano de 2005, esteve em Curitiba para debater sobre cultura e educação, e a articulação desses dois grandes temas após a aprovação do Plano Nacional de Educação 2014-2024. O ex-deputado foi entrevistado pelo compositor e dramaturgo Octavio Camargo, professor de estética da Escola de Música e Belas Artes do Paraná. O evento contou com performances e intervenções de Luiz Rettamozo e telas tridimensionais do projeto ComoVer.

Luiz Rettamozo: Depois de ter criado o mundo, Nhanderú subiu numa árvore e olhou para o chão. O que ele viu? Ele viu frutas verdes de argila e frutas cor de barro. Nhanderú, que criou o mundo de cima de uma árvore, parou de olhar para o horizonte. Precisou de uma nova informação. Tirou de um buraco ali perto de Guarapuava, dali onde começou tudo, dois seres, dois irmãos. Um muito rápido e outro muito lento. O rápido ficou encarregado de criar tudo que tem risquinho e o lento ficou encarregado de fazer bolinhas, todas as bolinhas que existem na face da terra. Então, olhando de cima nosso planeta é cheio de informações que se resumem a risquinhos e bolinhas. Neste confronto entre risquinhos e bolinhas é que nós teremos hoje aqui nesta discussão sobre cultura e educação Octavio Camargo e Carlos Abicalil.

Octavio Camargo: Boa noite à todos, é um prazer recebê-los aqui nesta noite com o professor Carlos Abicalil para conversar um pouco sobre cultura e educação. Muito se fala que cultura e educação andam juntas, mas é importante que se saiba também como cultura e educação se distinguem, que se conheça melhor este contorno.

O mito do artista na antiguidade ocidental se construiu em torno do Deus Vulcano, o “coxo mestre” que, por ser ferreiro tem entre os seus atributos a confecção das armas, o desenho e a arquitetura. Este Deus artífice, em Homero traz uma marca muito curiosa; ele manca. Isto porque num determinado momento ele resolveu conspirar contra Júpiter, seu pai, e ocupar o lugar do demiurgo, criador de todas as coisas. Júpiter, percebendo o complô, puniu o filho atirando-o do alto do Olimpo. Vulcano caiu estatelado em Lemnos e lá foi recolhido pelos Síntios, que o agasalharam e o trataram, mas ele nunca se recuperou totalmente da queda e guarda em seu corpo a lembrança de sua insubordinação.

Por conta desta história, fica claro que existe um aspecto forte de rebeldia na criação poética que transcende muitas vezes o que a sociedade está imaginando ou vivendo, pois o artista é também uma antena. Então, aqui surge uma pergunta que vai permear muito a nossa conversa. Como fica esta rebeldia estrutural do artista dentro do planejamento que a educação tem para a sociedade?

Mas, antes vamos abordar um pouco o contexto no qual este debate se inscreve. Estamos aqui sentados nas poltronas que fizeram parte do cenário de um espetáculo chamado A Casa do Terror, que esteve em cartaz neste teatro e, inspirado por este assento, gostaria que você falasse sobre o que há de mais terrível e mal assombrado na educação brasileira.

Carlos Abicalil: Uma das versões para a origem da palavra educare é aquela que trata da escuridão e, portanto, trata o educando como alumni, fora da luz. Isto para nós é uma grande contradição. A outra tradição e outra vertente da palavra educare é aquele que tira para fora o que já tem dentro, e talvez isso se aproxime mais do que seja a arte e a expressão em frente ao demiurgo criador, ousando depois ser atirado, portanto. De certo modo parte da escuridão entender que a educação é um dado de alguém, de uma turma que sabe, que está empoderada, que detém domínio e poder sobre aquilo que é tido como conhecimento, válido ou não, e aquilo que é o universo da escuridão, que não cabe neste quadradinho do que é conceituado como curriculum, como válido, como verdadeiro, como padrão, como espaço de conhecimento legitimado e permitido.

De algum modo esta tradição da educação é aquela que enquadra, que encaixa, que estabelece padronizações onde quem não está cabendo dentro do quadrado evidentemente alguma coisa errada tem. Pode ser inclusive da ignorância, da pobreza, da cor, da origem étnica. Pode ser em outros padrões por não confessar o mesmo credo, a mesma fé, os mesmo valores. Pode ser, portanto, um universo onde o túnel possa ser mais longo do que o percurso da luz. O fato é a gente saber se para além destas poltronas roxas, pontiagudas, quem se senta sobre elas tem a condição de estar em movimento no túnel ou se está parado dentro dele. E parado dentro dele, se está de frente para a luz ou de costas para a luz, e o que consegue enxergar não é a realidade. A dinâmica visível das primeiras discussões inclusive clássicas sobre o conhecimento, sobre verdade, sobre descrição de conhecimento, sobre o que é valido e o que é inválido, o que é real e o que é imaginário. Há como separar o que é realidade da narrativa sobre a realidade nos processos educativos? Há uma realidade que seja absoluta, estática?

Creio que nesta perspectiva do túnel, da longitude deste túnel, a posição de nós estarmos trancados nele ou diante dele faz toda a diferença. Se eu estou diante do túnel e não me sinto trancado nele, a esperança da luz e sua expectativa me faz mover. Se eu estou trancado no túnel e acho que a condenação é perpetua, nem diante da luz eu consigo enxergar uma perspectiva de saída.

Octavio Camargo: Há alguma perspectiva de abertura dentro deste túnel? Algo à vista?

Carlos Abicalil: Sem dúvida. Em primeiro lugar o túnel tem paredes e paredes que se escavam, por “ene” fatores. Pode ter sido por erosão eólica, por invasão de águas, pode ter sido por mão humana, por unhas, pode ter sido pelos primeiros artífices, mas se for o caso das ferramentas serem indisponíveis, as unhas também servem para cavar. O importante é que a gente sinta as paredes e os limites do túnel não como contidos nele mas sabendo que ele pode se alargar e que a a perspectiva do túnel é ligar um lugar a outro, não é esconder quem está dentro. Se a gente vê o túnel como sendo a ligação de um lugar a outro, mais escuro ou menos escuro, de um ponto de luz a outro ponto de luz, esta busca de saída e esta ansiedade, esse inconter-se naquilo que há ali dentro, que é educare, tirar para fora o que já esta ali dentro, valores, ansiedades, desejos e sonhos, narrativas de sonhos, a memória deles, faz com que este movimento seja permanente. A dimensão do túnel pode nos assustar, mas fazer o percurso, mais lento ou mais rápido, como os dois irmãos citados pelo Rettamozo, bolinhas e risquinhos olhados de cima tem determinada perspectiva, olhados no mesmo horizonte tem outra perspectiva e tem a condição de fazer muitas combinações diferentes.

Estar dentro do túnel é tomarmos uma condição de escolha. Podemos escolher estar trancados nele ou fazer o percurso que liga um lugar a outro lugar, mesmo que aquele ponto de saída seja inicialmente o que a gente entenda como conhecido, que já não nos amedronta e o incerto lugar de chegada possa ser motivo ainda de medo ou timidez, temor de dar o próximo passo.

Octavio Camargo: Recuperando a palavra temor, que cai muito bem neste cenário. O que mais lhe aterroriza com respeito à educação?

Carlos Abicalil: A indiferença, a ausência de identidade. Fazer de conta que as coisas se arranjarão por si mesmas e que pouco interessa quem está antes ou quem vem depois nesta trajetória é o que mais me assusta. Assim como o extremo apelo que nós temos na sociedade contemporânea para a individualização de êxitos, resultados e processos, como se o mérito individual que cada um tenha não seja também um processo coletivo e, portanto, uma responsabilidade comum. A indiferença e a individuação extrema é o que mais me aterroriza.

Octavio Camargo: Mudando um pouco a base de raciocínio, sentado agora nesse banquinho, me veio a inspiração de perguntar sobre os recursos para melhorar a educação brasileira. A gente tem notícias muito relevantes sobre o financiamento da educação no Brasil. Uma delas é a aprovação do PNE na Câmara Federal destinando 10% do PIB para a educação, que agora tramita no Senado. Outra lei ainda mais recente e já sancionada são os recursos do Pré-sal e do Fundo Nacional do Petróleo. Dentro destas duas perspectivas que parecem tão transformadoras, qual é o seu olhar sobre a questão? Quanto deste dinheiro vai para o sistema público, para a consolidação do Estado brasileiro enquanto garantia de educação de qualidade para todos, e quanto vai para os bancos?

Carlos Abicalil: A água pode voltar para o penico, como demonstrou o Retta. Inversamente, o petróleo é um caminho sem volta. Vamos lembrar que ele é essencialmente carbono, que tem a memória milenar da existência do planeta. Carbono é a base a partir da qual se calculam idades, a que épocas e eras determinados objetos pertencem. A arqueologia se vale muito do carbono. Estamos colocando, portanto, o fundo do petróleo e gás, que é mais do que royalties. A obstinação do Vanhoni na tramitação do Plano Nacional de Educação, batendo o pé para que nós tivéssemos lá duas marcas importantes: a de ampliarmos os investimentos com 10% do PIB como perspectiva do ponto de partida que temos hoje, arrancando a unha a parede deste túnel no sentido dos constrangimentos da política econômica geral, não apenas do Brasil, e ao mesmo tempo dizer que apostar num recurso que é finito, que nós estamos tirando o que milenarmente foi acumulado no passado, e que de maneira muito célere vai evaporar, rigorosamente, para dizer que isso deve gerar riquezas numa dimensão tal que outras gerações possam desfrutar não só do petróleo e gás, mas daquilo que nós podemos transformar em oportunidade de existência humana.

E estamos falando só de royalties, que é aquilo que se paga como contrapartida indenizatória por dano ambiental e riscos às populações que estão nas área de impacto. Estamos falando, portanto, de uma riqueza que é da humanidade inteira apropriada por um pedaço da humanidade, que á a nossa geração, dentro de um contexto nacional, por uma concorrência que, em leilão faz preço de quanto vale o que esta lá dentro, que a gente nem conhece ainda e que gera um fundo.

No fundo original a cultura também está como destinatária, mas é só o rendimento. Para a educação nós estamos dizendo que à vista a gente saca a metade deste fundo, e dos royalties 75% para a educação pública, porque lá está a palavra pública e 25% para a saúde, e aí já não está a palavra pública.

Esta aposta no futuro de um fundo que a gente não sabe todo o seu tamanho, tem a ver com as regras de mercado, e aí, falando de banco e da altura do banco, frente aos 10% que nós queremos ter ou aos 5% que nos falta, isso representa apenas 1% ou menos.

Para a gente entender também que aquilo que foi colocado como expectativa, de que o petróleo, o gás e os royalties por si só assegurariam essa disputa pelo fundo público, não asseguram de todo. É um pedaço importante desta conquista e, é óbvio também que o dinheiro público deve ser usado em favor de política universalizada, mas há aqueles outros agentes que estão disputando este mesmo fundo, então, não é por acaso que a iniciativa privada e os bancos estão de olho em mais crédito do FIES.

O FIES é uma coisa interessante. É um financiamento público, hoje barato, para o estudante que não ingressou numa instituição pública federal ter acesso à bancos (assentos) no ensino superior numa instituição privada. O FIES hoje corresponde a 40% das matrículas nas instituições privadas, e por que os bancos estão de olho? Por uma coisa muito simples. O cidadão que demanda uma educação superior e que não teve oportunidade na instituição pública ou nas bolsas do Prouni vai tomar este crédito, o governo federal, através da Caixa Econômica Federal deposita a vista na conta do dono da faculdade, o cidadão endividado paga 3,2% ao ano de juros. A taxa da Celic é 8,5%, então, pela pior aplicação que o dono da instituição fizer vai ganhar pelo menos o dobro.

Ou seja, o fundo público, inclusive o do Pré-sal e o do petróleo estão alimentando o lucro privado enquanto não houver oportunidade na universidade pública gratuita, laica e de qualidade.

Octavio Camargo: Falando em direitos, então, os bancos saem de cena e dão lugar às patentes. Com este frio nas pernas, inspirado por esta sensação, e a sensação ajuda as idéias a aparecerem… quando eu tinha 15, 16 anos, eu levava o meu violão no bar e tocava para os amigos, hoje a gente já não pode fazer isso, o bar deixou de ser também uma alternativa para a produção simbólica e passou a ser eminentemente um local de consumo.

Os direitos do autor e a propriedade intelectual são algo relevante na cultura e tem impacto grande em sentidos opostos, contraditórios. A questão dos direitos autorais, das marcas e patentes, é também uma questão que toca a educação? Em qual profundidade?

Carlos Abicalil: O mercado editorial brasileiro hoje é sustentado por um programa federal. O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) é quem sustenta o mercado gráfico brasileiro hoje. Se nós tirarmos os 16 bilhões de reais que o governo federal, a partir do PNLD patrocina para as quatro ou cinco grandes empresas gráficas do país, que são as editoras do mercado internacional, nós teríamos um mercado editorial em baixa velocíssima. Portanto, educação no Brasil financia literatura, financia as empresas que disseminam literatura, ou seja, as editoras.

Se nós separarmos o que as editoras abstraem do chamado direito autoral mediante os custos de produção, distribuição, encadernação, logística, etc… para o autor, no caso do conhecimento científico e do material pedagógico, sobra pra ele 1,2% deste montante.

Nós temos atrás do direito autoral uma enorme máquina de intermediação, uma máquina que no caso brasileiro é controlada por quatro grandes empresas. Mais do que isso, estas empresas, no Brasil, não tem restrição de meios. Elas podem ser donas de gráficas, de editoras, de jornal, de concessão de rádio e televisão e de bancos. As mesmas empresas! E podem controlar os organismos que distribuem os direitos, patrocinadores de shows, e de grandes eventos. Esta intermediação, protegida pelo direito autoral fica escondida num debate secundário.

Carlos Abicalil: Para além disso, vamos agora para o século 21, para aquilo que é produto do silício e do petróleo, dos conteúdos embarcados. Agora os conteúdos não são só impressos, não são só enlatados nas telas de vídeo que não deu tempo pra gente trocar de canal e que hoje acompanham comandos de olhos ou de voz. A Samsung recentemente lançou comando de voz para telas animadas de 50 a 60 polegadas em apartamentos de 40 metros quadrados.

Essa condição do chamado direito autoral, no caso da educação vem se confrontando primeiro com uma indústria gráfica poderosa. Se você subtrai o dinheiro investido pelo Programa Nacional do Livro Didático, você derruba estas empresas. Sem contar que no Brasil as empresas gráficas não pagam imposto sobre o papel, e isto não significa que o papel seja nacional ou reciclável. Estas contingências não estão colocadas no cenário e são importantes para o cenário geracional.

Segundo, os conteúdos embarcados, que hoje não conhecem mais nem fronteiras idiomáticas, porque eu posso baixar um programa que inclusive traduz do mandarim, do árabe, do inglês. Se a tradução é boa ou ruim fica a critério do programa e da máquina, que não vai, porém, nos informar se nós estamos entendendo o significado de cada palavra no seu contexto cultural. Abrir janelas do Windows custa caro e o software livre tem grande dificuldade de atrair os consumidores, até porque as exigências das máquinas de última geração são aquelas que obedecem fundamentalmente a dois domínios, o IOS da Apple ou o Android, da sua concorrente. Para serem multifuncionais, para terem interconectividade, para abrirem todas as janelas do Windows e para entrarem em todas as intimidades. Porque se é verdade que o chamado “big brother” pode estar monitorando inclusive o que nós estamos falando aqui, ele pode me localizar pelo GPS e decidir se esta privada sobre a qual estamos falando tem alguma outra finalidade do que aquela que culturalmente a gente lhe atribui em recintos mais fechados.

Octavio Camargo: Ainda falando sobre direitos autorais, tem uma outra questão que me preocupa inclusive mais, que é o ensino de ciência e tecnologia. A geração que a gente pretende formar será de produtores de conhecimento em ciência e tecnologia ou apenas de consumidores de tecnologia corporativa e proprietária?

Carlos Abicalil: Nas sociedades ocidentais cada vez mais. Veja por exemplo um grande conflito que estamos vivendo hoje numa política nacional altamente desafiadora: o programa Mais Médicos. A formação dos médicos no Brasil é extremadamente vinculada a duas grandes indústrias, a de fármacos e a das tecnologias dos exames complexos, e abandona o que é principal, a relação “médico-paciente”, que é a relação dialógica. O conhecimento da pessoa e não da descrição dos sintomas por si só, ou do diagnóstico que conhece números, mas não conhece feições.

Para dar um exemplo do que isso significa, a formação para ciência e tecnologia neste modelo abandona aquilo que é o principal – promover bem estar disseminado para o conjunto do povo, das pessoas – e trabalha aquilo que é prioritário segundo uma sociedade de domínio e propriedade que é a patente conduzindo comportamentos e relações e a patente sendo cobrada na perspectiva que é ter sempre um outro proprietário que não está na relação direta ali, a chamada “mão invisível” de Adam Smith não é uma relação de demanda elástica e oferta contida, é muito mais do que isso.

Nós temos discutido muito para que seja domínio público, a oferta de bibliotecas virtuais abertas, o acesso a esse conjunto de produções que vão da literatura e arte até o conhecimento científico e sua transformação em material didático, mas ao mesmo tempo tendo que influir sobre este mercado que tende a dominar tais condições.

Veja, por exemplo, se nós formos produzir um filme. Dependendo da pessoa ou da figura que vai ser documentada num documentário, nós podemos ter disputas porque alguém já reservou os direitos de exploração daquela imagem, daquela personalidade, até disputas relativas aos seus familiares em inventário patrimonial, e no meio do caminho ser ou não comercializável naquele momento, ou que aquele conteúdo seja veiculado para públicos mais amplos ou mais restritos.

Carlos Abicalil: No caso da educação, em que o conhecimento é um patrimônio comum, alguns chamam bem público – eu tenho restrições a este conceito de bem público porque atrás dele vem o patrimônio. Na verdade, eu acho que a gente precisa trabalhar cada vez mais em veiculação aberta, em domínio público, que não desconhece o direito de autoria, mas que ao mesmo tempo faculte o acesso cada vez mais ampliado a essa produção, a esse conhecimento, a essa visão, a essa valoração. A empresa lucrativa não gosta desta tese.

Octavio Camargo: Professor Carlos, esta é uma poltrona especial, chegou aqui em papel bolha, uma poltrona do designer Jayme Bernardo, ergonômica, confortável. Então, agora muito bem sentados, eu quero perguntar sobre estes prédios que estão sendo construídos Brasil afora, no Minha Casa Minha Vida, Ifets, escolas e creches. Uma questão muito importante no âmbito simbólico, talvez a que mais se destaque, é a arquitetura. Ela dura muito mais que a gente. Como está a questão do design? A reflexão sobre a arquitetura está sendo efetivamente contemplada nos programas de ampliação do nosso equipamento educacional?

Carlos Abicalil: Quando a gente observa os limites do estado brasileiro para contemplar a diversidade isso é visível nos mega empreendimentos do Minha Casa Minha Vida, que originalmente era para contemplar identidades territoriais regionais, mas tendo em vista a velocidade com que as coisas tem que ocorrer, a carência de profissionais efetivos em instituições públicas sob controle dos chamados controles externos e tribunais de contas, a concorrência muitas vezes desleal e injusta das chamadas empreiteiras nas leis de licitações vigentes no Brasil, os acordos pretéritos, os acordos futuros entre si e o envolvimento destes órgãos de controle do judiciário na interdição de determinados empreendimentos na sua diversidade, fazem por exemplo, com que a gente tenha que construir uma escola numa terra indígena Xavante no interior do Mato Grosso idêntica à escola sediada em Curitiba. Design?

Quando a gente pensa na diversidade de conformação das famílias e das regionalidades, da história dos bairros, e pensa nos empreendimentos que disputam fundo público de grande vulto em cidades de regiões metropolitanas, que não dispõem de grandes áreas próximas dos locais de trabalho, se conformam em gaiolões, como se nós estivéssemos em grandes galpões da produção da Sadia, onde todos os frangos são dispostos do mesmo jeito, os gaiolões tem a mesma metragem, tem que ter “”x” de ventilação e “y” de iluminação etc… todos iguais. Talvez eles sejam mais considerados na avaliação regional do que as habitações de 54 metros quadrados das políticas populares. Nós estamos portanto, diante de questões que são dilemas concretos da nossa sociedade, isto não é um assunto de design por capricho. É por bem estar e por principio, e é uma limitação concreta devido aos constrangimentos sobre o poder público ainda vigentes num modelo onde tudo tem que ser uniforme para “facilitar” um controle externo, onde cimento, pedra, areia, alumínio ou ferro devem ser padronizados para dar oportunidade a grandes empresas de ter fluxo dos seus materiais sem que isto respeite as diversidades que são colocadas.

Há uma dinâmica forçosa do tempo. Eu quero dizer que entre ter uma habitação desta e não ter, eu não tenho dúvida de que a opção ter é muito melhor. Entre ter política pública e não ter, eu não tenho dúvida de que ter política pública é excessivamente melhor. Eu não tenho dúvida de que do ponto de vista da população ser dependente de aluguel ou da rua, ou ter no nome da mulher, a autonomia de dizer esta casa é minha, é para a minha família, para o meu bem estar, e eu com ela posso melhorar a minha condição de afirmação diante do conjunto da sociedade, é muito melhor do que não ter. Mas design, bem estar, beleza, vai estar na conjugação de risquinhos e bolinhas que tem a ver muito mais com a identidade territorial depois que esta casa é ocupada e das identidades ou não identidades afirmadas ou negadas da comunidade em seu redor.

Esses condomínios artificiais, via de regra, levam um tempo de maturação muito longo. O que nós desejamos como perspectiva é que as pessoas que tenham alcançado tal condição a tomem como uma conquista sua, não como uma dádiva, e saibam que o domínio territorial e a conformação deste bairro não está acabada só por que a chave está na sua mão, e a dívida também.

Octavio Camargo: Além da ampliação das escolas do ponto de vista do espaço físico, há também a ampliação da jornada escolar, do ensino em tempo integral, que é um ponto em que o relatório apresentado pela Câmara avançou muito, garantindo o dobro do financiamento.

Eu faço agora uma pergunta de caráter mais particular, por ser professor de música no ensino superior. Mesmo sem a ampliação do turno a gente tem as aulas de educação artística nas escolas, que é universalizada no país e está no curriculum escolar tradicional, porém, os alunos das escolas públicas brasileiras não estão sequer sendo alfabetizados em música! Para que um aluno aprenda minimamente a reconhecer as notas e tocar uma melodia simples numa marimba. Nem sequer isso está acontecendo! Como você vê o design desta estrutura curricular do ensino em tempo integral? Em que medida este tempo suplementar não estaria completando lacunas que já deveriam ser resolvidas e cobertas dentro do curriculum tradicional?

Carlos Abicalil: Você traz uma situação bem concreta. Pais e mães gostam da escola quando reconhecem a placa do Ideb verde, amarelo e vermelha, quando o boletim do final do bimestre anuncia o resultado de seus filhos e filhas, ou nas ocasiões em que a sensibilidade deles é tocada nas festas populares do dia dos pais ou dia das mães. Quando crianças, adolescentes e jovens na escola se manifestam de outras formas que não o preenchimento de formulários, de provas e atestados de frequência? Tenho a mais firme convicção, embora meus cabelos sejam poucos, e os cabelos ficam em pé e arrepiam a alma nos momentos em que a música, a arte, a poesia, a expressão corporal, a dança, o não mensurável nas provas e exames é aparente no ambiente escolar.

Não é apenas um dado da música, embora a música já esteja afirmada na lei, não apenas a educação artística, mas a música em particular como sendo um direito do cidadão e da cidadã, e uma obrigação do curriculum. Acho eu, que se a gente fosse pesquisar entre pais e mães os simbolizadores de qualidade de educação, estas coisas estariam neste conjunto, assim como a prática esportiva. Não apenas o esporte com a bola, mas as outras práticas esportivas de brinquedos, de ludicidade, também de competição, mas de uma competição em que o espaço coletivo fica sendo evidenciado. Acho que isso é uma expressão bastante importante do design que está ausente nas escolas mais antigas, que tem que estar presente num futuro próximo, e de um conceito que a gente tem distinções que não são apenas perfumaria.

Educação integral não é a mesma coisa que educação em tempo integral e tempo integral é muito mais que contraturno. Quando eu afirmo que uma coisa é contraturno, eu já estou dizendo que a afirmação é o turno e que a negação é o contraturno. Estamos num estágio que é afirmativo, nós estamos ampliando o tempo de permanência e de domínio sobre esse espaço escolar, mas é sobre ele e não dele sobre a comunidade.

Avançando numa perspectiva de que o tempo integral dê oportunidade a outras expressões, dê vazão a outros saberes, inclusive, que dizem respeito a realização humana, e ao mesmo tempo avancemos para uma dimensão de educação integral onde os exames de português e matemática não sejam a única métrica a partir da qual todos e todas estejam enquadrados ou desenquadrados, classificados ou desclassificados como eficientes ou ineficientes, como bons e inteligentes ou como burros e onerosos para o conjunto a sociedade, improdutivos, portanto, e um recurso perdido. Acho que esse caminho para ser feito é bastante longo e não posso dispensar dele um componente constitutivo, que é inclusive a matemática, que é linguagem, como é a música. Há como fazer música sem matemática?

Luiz Rettamozo: Esta alface, ao saber que seria comida viva hoje aqui, ela começou a murchar, murchar, murchar, se desencantou totalmente e foram caindo as pétalas, mas eu trouxe material para temperá-la e vou comer ela aqui, para vocês.

Luiz Rettamozo: Estes quadros que vocês estão vendo aqui são feitos de uma maneira absurda. Eles são feitos com várias pessoas juntas, 30 a 40 pessoas. A gente desenvolveu um método de trazer imagens do barro, a gente vai até o local, conhece o chão, tira um pedaço de terra, na terra faz a tinta, passa no pé das crianças, elas correm em cima da tela e usam este aparelho aqui para fazer marcas de bicicleta, este é o carimbocicleta. As crianças quando vêem isso aqui ficam loucas e saem correndo brincar. É impactante estar olhando para o planeta terra no meio de sua sala de jantar. Eu convido a todos para depois subirem no palco e darem uma olhada com óculos 3D nestes trabalhos para ver como fica interessante olhar para o nosso chão. Estava muito boa a alface.

Octavio Camargo: Após esta intervenção reptílica do Rettamozo e seguindo para a última parte da conversa, surge uma questão que merece novamente uma troca de assentos, agora com uma mudança de perspectiva. Olhando a questão de baixo para cima, sentado numa almofada.

A Lei Rouanet é o nosso maior instrumento público de financiamento à cultura, mas para as pessoas comuns, aquelas que não são grandes nomes na mídia ou corporações que já tem previamente articuladas suas instâncias de “patrocínio”, para os simples mortais que tem seus formulários aprovados pela Lei Rouanet é muito difícil chegar até os recursos. Não digo que seja impossível o acesso para o empreendedor pequeno, mas é quase um milagre.

Até quando só os “almofadinhas” vão conseguir captar junto à iniciativa privada os recursos da Lei Rouanet, que é fruto de renúncia fiscal? Até quando só os grandes empresários da educação terão acesso aos principais instrumentos de financiamento público?

Carlos Abicalil: De fato o volume da Lei Rouanet é muito expressivo e é hoje o principal fomentador com fundo público, e ele é publico porque é dinheiro de imposto que deixa de ser recolhido. Então, é importante que a gente saiba que qualquer recurso da Lei Rouanet não é uma dádiva empresarial. Qual é o problema? É que as empresas escolhem qual conteúdo financiam. Embora todas as iniciativas se predisponham em concursos, em concorrências, editais – os editais, felizmente, nos últimos anos tem sido mais diversos, com valores menores e tem ajudado a desconcentrar recursos -, mas é bom que a gente se lembre, os grandes produtores do Rio e de São Paulo se mexem violentamente contra esta política, e permanentemente.

Evidente que a gente alcança pelos editais o que é chamado crédito concedido. Seu projeto tem um determinado valor e você tem “x” período para ir atrás do patrocinador, do chamado mecenas. Vai chegando o final do prazo, os pequenos produtores, aqueles mais autônomos, talvez mais desafiadores, mais revolucionários, como a alface que vai murchando, vão chegando ao final do prazo sem conseguir somar os patrocínios que garantam a realização do projeto. Eu não sei se isso acontece com o Vanhoni, mas acontecia comigo quando estava na Câmara. Daí eles apelavam para nós, para ver se a gente dava um jeito de prorrogar esse prazo. “Vamos ver se a gente visita a Monsanto, vamos ver se a gente vai até o Bradesco, se a gente visita o Banco do Brasil, se a gente vai para a Itaipu Binacional, vamos ver se a gente arranca um pedacinho de lá para neste prazo montar”, e no meio do caminho ainda tem o atravessador. A gente tem que lembrar que há algum tempo atrás tinham os grandes atravessadores de projetos. O projeto tinha que ser intermediado por alguém influente para poder chegar à sua realização.

Carlos Abicalil: Mas, a Lei Rouanet é uma ferramenta indispensável de patrocínio cultural no Brasil. Nós buscamos pelo Plano Nacional de Cultura, com muita participação do Vanhoni, que hoje conseguiu na Câmara a Comissão de Cultura distinta da Comissão de Educação, conseguimos colocar como meta pelo menos 1% do PIB assegurado para a cultura com financiamento público, num Sistema Nacional de Cultura que envolva as três esferas do poder: municipal, estadual e federal, e que evidentemente concorram neste sistema a ter a dimensão de diversidade de iniciativas de pluralidade de atendimento e de interiorização destas expressões reconhecidas e que, evidentemente, não tenha só o Circo de Soleil entre os projetos contemplados.

No assunto que diz respeito à conscientização dos empresários em torno da Lei Rouanet, eu acredito que os empresários são plurais. Não acredito que são todos bons ou todos maus, mas eu também tenho consciência de que o grande empresário transcontinental, transnacional, em que o único fator que o move é obter mais concentração da sua própria riqueza, ele só patrocina aquilo que lhe dá efetivamente resultado de lucro. Inclusive na legislação brasileira do poder público existe um tal de bônus obrigatório, bônus de volume, em que determinados espetáculos pelo bônus de volume são patrocinados com mais recursos das empresas do que outros porque tem uma taxa maior de retorno.

É comum a gente ver Fórmula 1 patrocinada por banco público no Brasil, porque tem um bônus de volume da empresa de publicidade que, para determinado público tal formulação esportiva atinge mais. O voleibol para uns, futebol para outros, Fórmula 1 para terceiros, e isso repercute portanto, em interesses de taxas de retorno. Aquilo que seria mecenato gratuito, fazer para nada, para o desfrute, para o deleite, basta ter uma boa taxa de retorno. Eu acho que empresários que tem tal dimensão pensam também nos conteúdos que vão ser veiculados, e os conteúdos podem provocar neles pânico e terror, do ponto de vista do que significa de rebelião da percepção popular em torno disso.

A arte tem, ao mesmo tempo, muito de libertário e pode ter também muito de conservador, de estratificação, de cristalização de valores que são dados como se nós já tivessemos destinos definidos a partir da cor, da conta bancária, do sobrenome e do patrimônio.

Octavio Camargo: Uma questão em profundidade, agora inspirada por estes óculos tridimensionais. Dos 10% que já temos consignados para a educação no PNE, quanto vai para a iniciativa pública, para a construção do Estado brasileiro e quanto vai para a iniciativa privada?

Carlos Abicalil: Esta é uma quantificação ainda pouco transparente, mas se eu considerar alguns indicadores, por exemplo um dinheiro que é para imposto, que é obrigatório mas que não vai para o cofre público, vai para uma corporação do sistema patronal chamada Sistema S. É imposto por que? Porque é obrigatório. É uma contribuição de 2% sobre a folha de salários. Quanto mais emprego nós temos, mais condição de recolher emprego formal, e uma parte deste imposto vai apropriado pelos sindicatos patronais do chamado Sistema S por setores. Isto é uma legislação que vem dos anos 40 e está hoje constitucionalizada.

Se eu considerar que nos últimos anos a melhoria geral da renda por emprego formal gerou uma condição tal que só no salário mínimo nós temos um ganho superior a 4 vezes o que era há 10 anos atrás, eu posso imaginar que o volume de recursos que circula neste ambiente seja algo parecido a R$ 12 bilhões por ano. É equivalente ao complemento da União para o Fundeb, para a educação básica no país inteiro para estados e municípios por um ano! Esta é uma conta de fundo público administrada por uma gestão privada.

O que nós conseguimos lograr de 2007 para cá? Que as vagas sejam gratuitas e que nós tenhamos condição de ter controle sobre quem ingressa e de que maneira conclui. O Pronatec acelerou isso e acrescentou mais dinheiro sobre isso.

Carlos Abicalil: O segundo aspecto importante: se eu considerar o volume de matrículas em ensino superior brasileiro. Saímos de um pouco mais de 4 milhões há 10 anos atrás para 6 milhões e 700 mil agora, metade dos quais são beneficiários de programas federais. 1 milhão e 200 mil estudantes estão em instituições federais ou estaduais que são públicas, outro milhão e 100 mil são beneficiários do Fies, com financiamento com juros negativos, portanto, quem paga a diferença de juros é o poder publico, e se for estudante de licenciatura ou de medicina terão como contrapartida serviços públicos e estão dispensados de pagar o empréstimo, e um terceiro grupo que é bolsista do Prouni, que são 1 milhão e 200 mil. Portanto se eu desfaço esta conta inteira eu estou dizendo que daquilo que é considerado investimento privado em educação metade é fundo público, embora não conte na conta de espaço público.

Por isso se estima em torno de 7 bilhões e meio adicionais nestes programas que eu mencionei, ou de bolsa ou de financiamento anualmente. 7 bilhões e meio de reais é 70% do que a União complementa ao Fundeb dos estados e municípios. Se eu considerar que as empresas de educação superior no Brasil desde os anos 40 não pagam impostos, e se forem beneficentes, de assistência social ou sem fins lucrativos não recolhem nem a previdência, portanto a previdência é um ônus coletivo, eu estou colocando um lucro adicional aí como fundo publico. Eu diria portanto que, daqueles 6,1% apertado do ano de 2012 de dispêndio público direto, 1,4, 1,5% é apropriado por instituições privadas, embora seja de domínio e de uso público. Nós estamos falando de algo em torno de 4,7, 4,8% do investimento público direto.

Daí o debate que o Vanhoni faz na composição do relatório elaborado pela Câmara em comparação com o relatório do Senado, sobre como aferir os 10% do PIB. São 10% de investimento público em educação pública pelo relatório do Vanhoni e, no Senado são 10% de investimento público em educação. Não são as mesmas coisas.

O Estado brasileiro é tão constrangido pela legislação que desconfia sempre da iniciativa pública que, no prazo de 10 anos, para realizar este investimento nós teríamos que quebrar a lei de responsabilidade fiscal e teríamos de radicalmente modificar a lei de licitações para que fossem a favor do poder público e não a favor das empresas concorrentes ou da justiça mediadora que, via de regra, esconde muito de suas motivações.

Realização: Mandato Deputado Federal Angelo Vanhoni
Direção e apresentação: Octavio Camargo
Participação especial: Luiz Rettamozo, com o projeto ComoVer
Contra-regras: Ricardo Correa e Karla Mazia
Iluminação: Tatiana Moraes
Arte do convite: Cesar Marchesini
Fotografia e editoração: Gilson Camargo

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