Não é todo dia que Antonio Arney reaparece em espaços expositivos de Curitiba. E fazê-lo no Museu de Arte Sacra de Curitiba dá um significado ainda maior ao título da mostra, simbolicamente, como estações da vida, do tempo, como também dos passos últimos que Cristo sofreu por ter sido criado à nossa imagem e semelhança. Nesse contexto, esse selecionado conjunto de quatorze pinturas do artista – uma síntese de sua produção muito ativa – fala da natureza do tempo que habita nelas, com suas camadas entranhadas na madeira, uma matéria-prima sempre constituinte, que oferece certa dramaturgia para a própria paisagem de sua pintura. Em parte, pela escolha de um material desprezado, quase avesso a esse meio, e, sobretudo, por estar erosionado, com natureza e textura que oscilam entre a apropriação de signos, com aproximação ao Dadá, Arte Povera, Brut e certa marca Kitsch pela escolha de alguns elementos utilitários e configurações (de variável signo e procedência).
Antonio Arney levanta, em sua poética, uma trama compositiva paradoxal, que abriga, ao mesmo tempo, um desejo construtivo de ordem e uma geometria abrupta e acidentada que parece desmentir e fazer desabar a essência pura dessa construção de medidas e proporções justas, seja pelo uso da cor vermelha, cor de sangue, da paixão, que está na base e no sustento das imagens oferecidas como partitura dominante, seja pelo caminho entreaberto em seus quadros pela tridimensionalidade das colagens de rejeitos ou objetos. Com a força emblemática da imagem, essa tridimensionalidade é conquistada pelas camadas superpostas de papéis (banhados em anilina e furados, por exemplo), pelos relevos irregulares das madeiras, bem como pela presença de parafusos, puxadores, maçanetas.
A obra instaura uma situação de fronteira com um equilíbrio que exala a arquitetura de abóbodas, meias-luas, colunas e coloca em jogo a pintura em sua condição de palco, de pintura-altar ou janela. Pintura de parapeito em estado inelutável de corpo, como um edifício que abriga seu próprio espírito visual. Como ícone e emblema de nossa contemporaneidade, que guardam, talvez, certa aura espiritual in absentia. De fato, apesar de a pintura não ter nenhuma imagem religiosa (como acontecia com os campos de cor de Rothko ou as abstrações líricas de Mira Schendel), ela respira também um ascetismo rigoroso, uma austeridade idealizada em seu sonho geométrico, de medidas que procuram um equilíbrio transcendente ainda que tão humano, tão cheia de ruídos e acidentes em sua superfície ampliada. A travessia da madeira aporta também um grau de impureza – “a madeira limpa para mim não tem valor”, comentava o pintor há pouco tempo – e, sobretudo, abriga uma arquitetura temporal, camadas como alicerces e vice-versa. Nesse vocabulário identificável de Arney, há décadas concentrado nas estações mais como séries que como fases, o tempo é um ingrediente substantivo, um sentimento espacial. “O tempo é minha matéria”, dizia um verso de Drummond de Andrade; a pintura de Antonio Arney parece confessar o mesmo.
Adolfo Montejo Navas, outubro de 2015.
Tudo veio em certas épocas. Veio primeiro o papel, depois eu descobri o parafuso, depois apareceu essa madeira que o cupim comeu, e eu tô até agora com a madeira, ainda não achei outro material. Mas, quem pesquisa como eu, de repente vai me aparecer alguma outra coisa bem diferente. Vai ser meio difícil, mas vai aparecer, nem que eu tenha que colar um sabe deus o que no quadro, né!
Eu lidei com madeira desde criança porque meu pai era marceneiro e carpinteiro, eu via ele lidando com madeira, eu fazia os meus brinquedos de madeira, fazia tudo certinho de madeira, e vivia no mato olhando aquelas cascas das árvores, aquela coisa toda. Então, tudo aquilo eu queria mostrar, de algum jeito eu queria mostrar, eu não queria que ficasse só pra mim, pois, se eu gosto disso aqui por exemplo eu quero mostrar, quero que mais alguém veja. Eu seria egoísta se eu fizesse só pra mim e não mostrasse. Então, eu comecei mostrando assim.
Eu tenho a cara fechada mesmo por natureza, que nem meu pai. Meu pai parecia que tava sempre enferruscado, mas era a maior bondade do mundo. Ele ficava assim, com os riscos na testa sabe, mas era uma maravilha de bondade o meu pai. É ele que me ajuda aí nas minhas pinturas, até hoje. Eu só chamo o nome dele, Joaquim e, você pode não acreditar, mas ele me ajuda nas coisas que dão certo, porque eu aprendi com ele bendizer, essa rigorosidade que eu tenho em colocar essas formas, essas medidas certinhas. Ele fazia tudo isso porque ele era marceneiro, fazia móveis e tudo. Então, eu não preciso nem falar, eu só penso: Joaquim…
* Antonio Cordeiro dos Santos, décimo e último filho de Joaquim Cordeiro dos Santos e Ana Alves Cordeiro, nasceu em 29 de setembro de 1926 na localidade de Laranjeiras, município de Piraquara/PR, região metropolitana de Curitiba. Arney, nome que deveria ser registrado em cartório ao nascer, foi adotado posteriormente por Antonio no princípio de sua produção artística.
Imagens produzidas em duas visitas à residência e atelier do artista, em Curitiba, em setembro e outubro de 2015.
Fotos: Gilson Camargo
Bendito seja!