Destes tempos | Exposição individual de Lígia Borba

Em exposição na Galeria Ybakatu de 18 de março a 27 de maio de 2022. Imagens produzidas no atelier e residência da artista durante o ano de 2021.

Entre nós

Lígia Borba vincula sua produção recente trazida para esta exposição, as séries Objetos oceânicos, Tecidos sem tear, Trançados egípcios e Intrusões, à sua produção anterior, igualmente variada e reunida sob o título Objetos topológicos. Todas compostas por peças de cerâmica – como na vasta maioria de suas produções, a argila é aqui a matéria eleita pela artista –, e derivadas de suas especulações formais sobre a Fita, ou Faixa, de Möbius. A diversidade de resultados atesta a diferenciada capacidade da artista de trabalhar com profundidade a argila, mais a água e o fogo, é claro – lembremos que estamos falando de uma ceramista, que explora a argila numa mesma família formal.

Tecnicamente falando, a Fita de Möbius é um espaço ou superfície topológica que se obtém pela emenda das extremidades de uma fita após tê-la feito dar uma meia volta em torno de seu eixo. Caso se queira riscá-la longitudinalmente com um lápis, o risco ora ficará do lado de fora, ora passará para o lado de dentro, o que serve para derrubar a velha antinomia entre dentro e fora. Como explica Ton Marar em seu Topologia geométrica para inquietos, esse vasto e intrincado território do conhecimento ao qual pertence a Fita serve, dentre outras inadvertidas possibilidades, para que possamos deduzir o formato do universo. “Seria nosso Universo infinito? Se for finito não deve ter borda, senão o que estaria para além da borda? Não há a menor chance de sairmos deste Universo para apreciar o seu formato […] Temos de deduzir este formato”. Indagações como esta, além da beleza intrigante da Fita e da infinidade de “nós” a ela correlatos – sim, os nós, esses produtos triviais da inteligência dos dedos, do mais simples à mais complexa amarração que é um nó de marinheiro –, fez com que ela, Fita, caísse nas graças dos artistas plásticos, dentre eles Escher, o gravador holandês, artífice de grandes paradoxos visuais, corresponsável por sua popularização.

A Fita de Möbius causou impacto no meio artístico brasileiro, a começar pela escultura em metal Unidade tripartida, do suíço Max Bill, que levou o grande prêmio da 1ª Bienal de São Paulo, em 1951. À Unidade tripartida se juntaria, 12 anos depois, Caminhando, obra prima de Lygia Clark, responsável pelo deslocamento do espectador da obra de arte de sua habitual passividade física – só da passividade física, pois a atividade mental, quando estimulada por qualquer boa obra de arte, pode por si só atingir as raias do frenético –, colocando em suas mãos uma tesoura e uma fita de Möbius feita de papel, e convidando-o a cortá-la longitudinalmente, conduzindo-o a uma espécie de caminhada.

Lígia BorbaDepois de Moebius, 2019
Cerâmica 1230°

É provável que Lígia Borba tenha chegado à Fita de Möbius pela via descrita, mas a artista explica que sua visão sobre o tema renovou-se com as leituras de textos de Jacques Lacan acerca de nós, como o Seminário Topologia e Tempo, de 1978-1979. Por si só, essa referência demonstra o espraiamento desse campo do saber que é a Topologia, ramo da matemática, em outras disciplinas. Por quê? Porque, assim como na Fita, certas situações não nos permitem distinguir entre dentro e fora, sonho e realidade, observador e observado etc.

Esta introdução, que já vai consumindo metade do espaço reservado a este texto, não elude o efeito causado pelas obras dessa exposição, sua qualidade material, o processo envolvido, dentre outros aspectos. Fosse assim, as obras de arte se resolveriam em teorias, o que não é o caso. Uma coisa é o conteúdo da obra, sua carga metafórica, o dado simbólico, outra coisa é a resolução formal desse conteúdo. Quem já leu sobre a tumultuada vida de Alberto Giacometti sabe de seu desespero na confecção de retratos, na dificuldade de realizar um nariz a contento. “Impossível”, dizia ele.

Olhar com atenção as obras que Lígia nos apresenta implica reconhecer o processo envolvido na sua produção. Matéria e técnica, como matéria e forma, são termos indissociáveis, e a eles junta-se, nesse caso, aquela que promove as ações transformadoras: a artista.

Lígia BorbaObjetos oceânicos I e II, 2021
Cerâmica 1230°
Dimensões variáveis

Olhar para os cachos de elos que perfazem o corpo dos Objetos oceânicos, afora a proposição de que tudo está articulado entre si, num emaranhado que vai se esparramando sem fronteiras, remete à raiz do processo de confecção: tomar a argila, matéria tornada mole e suscetível enquanto umedecida, reduzi-la a porções posteriormente espichadas em linhas grossas e compridas, cortá-las em roletes curtos e soldar suas extremidades. Esse procedimento repetido obsessivamente, ampliado com o engate de um elo no outro, culmina na proliferação que dá à peça uma aparência orgânica. Esse encaminhamento, por sua vez, decorre da organicidade da relação estabelecida entre a artista e a matéria, o enamoramento, a pulsão erótica que nasce da experiência da argila pelas mãos, sopesando-a, percebendo sua densidade, peso, maleabilidade, cheiro, cor e luminosidade. Assim como a Fita de Möbius, a linhagem de artistas à qual Lígia Borba pertence não se constitui antes desse embate, sob a forma abstrata de um projeto, ao contrário, é indissociável da matéria, acontece junto com ela; a artista fabrica o destino da matéria ao mesmo tempo em que fabrica seu próprio destino, encontra-lhe a vocação formal ao mesmo tempo em que essa vocação nasce-lhe dentro, processo que também envolve os instrumentos utilizados e que finda no avizinhamento do fogo que, junto com a água e a terra, compõem o terceiro elemento do processo.

Seguindo essa linha de raciocínio, as peças pertencentes à série Intrusões são até mais explícitas. A topografia movimentada de suas concavidades, corpos ocos em cujas fronteiras irrompem múltiplas aberturas alveolares, enseja a passagem da luz e do ar, permitindo que o olhar a atravesse; a lisura de seus corpos, convidando à carícia – tudo isso dispõe sobre a intensidade do contato que as gerou.

As peças reunidas sob os títulos Tecidos sem tear e Trançados egípcios aprofundam-se no tema formal dos nós. As linhas grossas de argila perfazem tramas de desenhos variados, cuja lógica construtiva muitas vezes se demora a perceber. Recortados, depositados em caixas fechadas com vidro, têm um quê de achados arqueológicos, da memória da descoberta e desenvolvimento da arte de tecer, da produção de tecidos para as roupas, tapetes, enfim, da infinidade de objetos decorrentes dessa invenção. O protagonismo do barro remete ainda às casas primitivas, aquelas que precederam a invenção do tijolo, que nasceram de paredes confeccionadas pelo trançamento de fibras vegetais cintando uma área de modo a definir uma zona interior, cujo acesso se dava por uma entrada, um umbral, uma porta que abria indistintamente tanto para o íntimo como para o mundo.

Agnaldo Farias

Lígia BorbaTecido sem tear 1, 2, 3, 4 e 5, 2021
Cerâmica 1230°
57,5 x 41 cm (cada)

Ligia BorbaTrançado egípcio 2, 2021
Cerâmica 1230°
59 x 39 cm

Lígia BorbaIntrusão 1, 2021-2022
Cerâmica/raku
40 x 24 x 23 cm

Lígia BorbaIntrusão 2, 2021-2022
Ceramica/raku
26 x 18 x 24 cm

Lígia Borba Intrusão 3, 2021-2022
Ceramica/raku
33 x 26 x 23 cm

Lígia BorbaIntrusão 4, 2021-2022
Cerâmica/raku
47 x 22 x 13 cm

Lígia Borba Intrusão 5, 2021-2022
Cerâmica 1230°
40 x 16 x 35 cm

Lígia BorbaIntrusão 6, 2021-2022
Cerâmica 1230°
40 x 12 x 32 cm

Lígia Borba – Trama de elos, 2021
Cerâmica 1230°
49 x 24 cm

Link para imagens das obras em exposição na Galeria Ybakatu
Fotos: Gilson Camargo

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